Resumo do Livro:
Em um dos
ensaios de seu volume Pluto’s Republic, o biólogo britânico e
ganhador do Nobel de Medicina de 1960 Peter Medawar repreende o antropólogo
francês Claude Levi-Strauss por ter escrito, em seu clássico La Penseé Sauvage, que explicações miticas são
“tão válidas” quanto às científicas.
Medawar,
famoso pela pena afiada – sua devastadora dissecação de Teilhard de Chardin é
um clássico da manipulação virtuosa do frio aço do fino humor britânico –,
ironiza o tom de embevecida aprovação com que Levi-Strauss descreve a crença de
certos povos siberianos, de que o bico do pica-pau é um amuleto contra a dor de
dente. “Será que alguém que esteja realmente sofrendo de dor de dente não
preferiria uma linha de pensamento mais pragmática?”, pergunta, inocentemente,
o inglês.
Peter
Medawar morreu em 1987, aos 72 anos. Sob muitos aspectos, Richard Dawkins é seu
principal herdeiro intelectual no mundo do ensaio e da polêmica. Em seu mais
recente livro lançado no Brasil, A Magia da Realidade, Dawkins retoma o tema da
alfinetada do velho mestre biólogo no velho mestre antropólogo e o leva além:
seu objetivo não é apenas apontar o fato de que as explicações científicas são
mais úteis, do ponto de vista
pragmático, que as míticas, mas também mais fascinantes.
Há mágica e poesia na ciência, eis seu argumento, desde que saibamos enxergar.
Ou, como ele escreve:
Quero
mostrar a você que o mundo real, como é entendido cientificamente, tem sua
própria magia. Eu a chamo de magia poética, uma beleza inspiradora que é ainda
mais mágica porque é real e podemos compreender como funciona (…) É
absolutamente fascinante. Fascinante e real. Fascinante porque é real.
A Magia da
Realidade é um livro
infantil ou, talvez melhor dizendo, um livro para pais e filhos lerem juntos.
Está dividido em capítulos que representam o tipo de pergunta que cedo ou tarde
toda criança faz, e que tradicionalmente são respondidas com contos de fadas ou
paráfrases bíblicas – Quem foram os primeiros seres humanos? De onde vem o
arco-íris? Como tudo começou? – e oferece versões simples, poéticas e objetivas
das respostas encontradas pela ciência.
Mesmo os
detratores de Dawkins reconhecem seu enorme talento para a exposição e a
explicação – “Dawkins é ótimo para tratar de ciência, é uma pena que se meta a
dizer bobagens sobre religião” é uma queixa-clichê – e A Magia da Realidade está bem à
altura de sua obra de divulgador. Talvez até mais, pois o livro, escrito com o
propósito de ser acessível ao leitor infantil, simplifica ao máximo, sem
idiotizar. E cada explicação funciona como um trampolim para que Dawkins se
lance numa verdadeira cornucópia de temas científicos: espectrografia, efeito
Doppler, seleção natural, o conceito de “modelo científico”, epistemologia (o
subtítulo do livro, afinal, é “Como sabemos o que é verdade”)… Há até uma
citação de Wittgenstein. Escrevi que se trata de um livro para crianças? Bem,
também serve para adultos: se você é um cara “de humanas” que só vai ler um
livro de “hard science” na
vida, leia A Magia da Realidade.
Para tudo
isso funcionar, claro, as ilustrações de Dave McKean
são um apoio precioso. Conhecido dos fãs de quadrinhos (ao menos, dos mais
antigos) como o ilustrador de Asilo Arkham
(a infame graphic novel em que
o Coringa passa a mão na bunda do Batman) e, especialmente, como o capista da
série Sandman de Neil
Gaiman, McKean cria uma mistura de ilustração e infografia que é uma festa para
os olhos e uma sustentação firme para o texto. A sequência de reconstituições
de ancestrais humanos que percorre o capítulo sobre a origem do homem é de
tirar o fôlego: tão surpreendente quanto comovente. O poder dos desenhos de
McKean fica ainda mais claro na edição interativa do livro (sobre a qual, mais
a respeito adiante).
Cada
capítulo também traz um mito a respeito do mesmo assunto, e Dawkins coteja a
versão mítica com a científica, sempre em detrimento da primeira: mesmo
reconhecendo a beleza criativa dos mitos, o autor é firme em manter, a todo
tempo, a distinção entre ficção agradável e explicação real. Entre os mitos,
inclui narrativas de povos indígenas de várias partes do mundo, lendas nórdicas
e, no que provavelmente irritou e irritará multidões, episódios bíblicos.
Dawkins tem
ainda a rara humildade de admitir que não sabe algumas coisas, que certos
assuntos estão além de sua área de especialização. Essas admissões aparecem
principalmente no capítulo sobre a origem do universo. “Não entendeu?”,
pergunta ele, a respeito do conceito de que não teria existido um tempo antes
do Big Bang. “Nem eu”.
Os dois
últimos capítulos são os mais filosóficos e, para certas pessoas, polêmicos,
intitulados “Por que coisas ruins acontecem?” e “O que é um milagre?”. Neles,
Dawkins apela para a teoria da evolução, psicologia, teoria das probabilidades
e simples bom-senso para tirar o gás metafísico dessas questões que,
normalmente, são tidas como coisas que estão fora do escopo da ciência.
A versão
brasileira do livro é um volume em capa-dura, da Companhia das Letras,
traduzido por Laura Teixeira Motta. Tradutora que, aliás, merece cumprimentos
por algumas boas soluções que encontrou: no original britânico, Dawkins compara
o inglês contemporâneo ao de Chaucer, para traçar um paralelo entre a evolução
das espécies e a da língua. A tradutora troca inglês por português e Chaucer
por Pero Vaz de Caminha, o que faz muito mais sentido para o leitor brasileiro.
(Agora, sendo chato, implico só um pouquinho: por que não Camões?)
Mas também
existe uma edição internacional, em inglês, interativa, vendida como “app”
para iPad, que inclui áudios narrados pelo próprio Dawkins e versões
jogáveis de várias ilustrações. Por exemplo, é possível “brincar” de seleção
natural, escolhendo quais sapos de uma população vão viver para compor a
geração seguinte, ou ajustar o ângulo e a força de um canhão que, posicionado
no polo norte, precisa pôr uma bala em órbita da Terra.
Se o livro
impresso é fascinante, a versão interativa é imersiva – você some lá dentro, e
só volta aqui para fora quando forçado. Do ponto de vista didático, o livro
interativo é uma ferramenta muito mais poderosa, já que, a partir dos jogos, é
possível realmente assistir aos princípios científicos em ação. A Companhia das
Letras, que curte bem um hype, poderia contratar um ator global para dublar as
narrações de Dawkins e fazer sua versão. Seria um serviço à educação nacional.
Tenho um
sobrinho que, em breve, completará três anos. Se fossem 13 (ou mesmo 10), ele
ganharia de presente A Magia da
Realidade.
Companhia das Letras, 2012, 272 páginas :::
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